MEMÓRIAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: Interfaces com as Novas Tecnologias de Comunicação
Vani Kenski
In: Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. Org. Denice Babara Catani et al. São Paulo: Escrituras Editora, 1997.
Memórias e Tecnologias
“As memórias humanas são afetadas pela natureza coletiva, social, de nossas vidas. Nas relações cotidianas não podemos deixar de sentir que as tecnologias transformam o modo como dispomos, compreendemos e representamos nossas memórias.”(87)
Novas necessidades e exigências
Depositar marcas e lembranças nas tecnologias: “o homem altera as suas próprias formas de se lembrar do passado”(87), as tecnologias alteram as formas de retentativa e lembrança, mudam o próprio sentido do que é memória, impoe uma nova ordem nas formas tradicionais de compreender e agir sobre o mundo. “Através de imagens, sons e movimentos apresentados virtualmente em filmes, vídeos e demais equipamentos eletrônicos de comunicação, é possível a fixação de imagens, o armazenamento de vivências, sentimentos, aprendizagens e lembranças que não necessariamente foram vivenciadas in loco pelos seus espectadores” (87)
Essas tecnologias fixam lembranças de fatos (vividos) e derrubam as barreiras entre os acontecimentos reais e ficção: memória artificial, lembraças inventadas
Memória social
Estas mixagens e reinterpretações possibilitadas, influenciam na memória pessoal e na memória coletiva, “refletida na cultura, no conhecimento científico e na forma como a sociedade identifica seus valores e comportamentos, sua ideologia.” (88)
Escola e Memória
Escola: “local de transmissão de alguns aspectos da memória coletiva, valorizada pelo grupo social ao qual pertence”(88):memória-saber. Lá também circula “um outro tipo de memória – dinâmica e mutável – suscetível de transformações a partir das vivências, acontecimentos e conhecimentos que vão ocorrendo nas interações cotidianas”(88): memória em movimento.
A escola torna-se o locus privilegiado em que a memória-saber pode ser recuperada, trabalhada, sistematizada, atualizada e socializada, relacionando-se com a memória em movimento, permitindo um novo saber, ágil, dinâmico e significativo.
Isto não se dá apenas pelas atividades formais de ensino, mas pelas formas culturais que circulam na sala de aula e fora dela, nas trocas de idéias, sentimentos e comportamentos. “Nesses momentos de interação, a oralidade e a escrita são fundamentais na dinâmica da construção da memória coletiva dos envolvidos.”(89)
A transmissão oral da memória escolar
Nas sociedades sem escrita, qualquer proposição que não seja periodicamente retomada e repetida em voz alta será condenada a desaparecer; circulares, as sociedades repetem-se e, na repetição, se preservam, preservam seus costumes e memórias.
“A nova sociedade oral baseia-se no ferramental tecnológico para, através de sons e imagens, informar, transmitir conhecimentos, divertir, preservar e inovar.”(89) “A forma oral de transmissão dos conhecimentos faz recortes, seleciona, valoriza e reinterpreta a suposta objetividade do texto escrito. É ainda através da fala do professor que a memória socialmente valorizada é retransmitida com todos os viezes ideológicos e idiossincrasias que o sujeito-professor possa ter diante do conhecimento”(89)
Ensino formal: oralidade do aluno (terminal mecânico) só é permitida como reprodutora da fala do mestre. “Ao aluno resta apenas a tarefa de verbalizar – oralmente e/ou por escrito – o conteúdo transmitido, quase sempre não na forma como o compreendeu, mas no sentido e no encaminhamento definido pelo professor”(90), memorizar e dizer o conteúdo como bloco maciço e sem nenhum envolvimento pessoal e afetivo (como se isto fosse possível): objetividade. A metodologia ainda é a mesma das antigas sociedades orais: circular e repetitiva.
Nova realidade escolar: os conhecimentos já não veiculam exclusivamente neste espaço social. O conhecimento é atualizado e socialmente valorizado, não se apresenta mais apenas no recinto fechado das escolas, sob o comando do professor. O conhecimento é fragmentário e sedutor, pode ser acessado e manipulado a qualquer instante através dos processos interativos de comunicação eletrônica.
“É preciso que saibamos interagir – ensinar e aprender – com esses novos modos de compreender. Novas escolas, novas memórias. Novas tecnologias, novas metodologias.”(90)
A lineraridade da escola da escrita
A sociedade da escola, assim como a escrita, movimenta-se linerarmente
A escrita aposta no tempo. Distância entre o “mundo do autor e do leitor”. “Na sala de aula, as idéias impressas, e que remontam há muitos séculos atrás nos mais diversos contextos e com as mais variadas intenções, podiam ser recuperadas, analisadas e compreendidas.”(91) Porém, em muitos casos, o texto virou pretexto para doutrinações que nem sempre coincidiam com as preocupações do autor. Interpretação dos escritos tem exatamente a função de revesti-los com um tecido de circunstâncias, de experiências e discrusos que possa lhes dar um sentido.
Memória-saber recuperada e trabalhada em sala de aula, virou “matéria”, impessoal e desumanizada, fora de contexto, conhecimento distante. “O saber científico apropriado pelas escolas, em sua impessoalidade e na ânsia de se vincular estritamente ao domínio da razão (como se a razão não fosse apenas um dos lados, o lado cognitivo da memória humana) torna-se metafísico, sagrado. Tem seus postulados, dogmas, “verdades”, “bíblias””(91). Assim, os professores tornam-se sacerdotes destas seitas científicas, repassando memórias congeladas em textos lineares, “verdades” a serem repetidas.
“A escola perde a oportunidade de ser um espaço de movimentação e questionamento da memória-saber e passa a gerenciar a reprodução inquestionada desses conhecimentos estruturados e cristalizados, específicos de um determinado tipo de saber, o saber escolar. A partir deles, a escola pode se posicionar diante da sociedade para dizer se o aprendiz sabe ou não; se é “competente” ou ignorante em alguma área do conhecimento. Confere diplomas e atestados do grau de saber atingido individualmente, de acordo com suas próprias medidas do que seja este “saber”. Atestados que vão definir socialmente a fun~c”ao profissional a ser ocupada pelo cidadão. Ainda que estas evidências de conhecimento e de informação não estejam mais adequadas à realidade que não cessa de se transformar.”(92)
Uma nova realidade dinâmica e envolvente
Memória do futuro: exercício, forma do sujeito se situar em um novo tempo pulsante e pleno de energia (potencialmente explosiva), um movimento contínuo de conhecer-se e formar-se através da comunicação permanente. “É um grande desafio para as novas escolas, novas metodologias, novos mestres” (92)
As vivências e memórias deixam de ser lineares, “nos tornamos seres hipertextuais”(92)
Um novo espaço para a escola
Formar professores em uma sociedade com inovações e mudanças muito rápidas, em um processo confuso e perturbado. “Os professores já não são os principais agentes na transmissão dos conhecimentos”(93)
A escola da memorização individual dá espaço para a aquisição e elaboração conjunta dos conhecimentos, do trabalho em equipe e da influência mútua dos que estão permanentemente interagindo em situações de ensino.
Escola como espaço social por excelência pode assumir o papel de desenvolvedora da inteligência coletiva, onde os indivíduos atuam como animadores do espaço do saber (indivíduos singulares, múltiplos, nômades e em meio à metamorfose permanente)
Escola como instituição de memória social
O professor, agente da memória
Professor – aquisição do conhecimento, reelaboração, transformação e adaptação às formas possíveis de serem transmitidas aos alunos.
“As reelaborações do conhecimento na memória do professor e a sua explicitação na sala de aula são movimentos que contam sempre uma “história”: a história da mixagem da informação com a sua própria forma de se relacionar com o que vai ser transmitido. Recupera, assim, em sua prática docente a função do narrador das sociedades primitivas: o agente da memória do grupo social” (94)
“A maneira de ensinar de cada professor é construída ao longo do tempo, junto com a vida, através de interações freqüentes com tantos outros “professores”, em situações escolares e fora delas. Essas interações funcionam como marcas, modelos inscritos na memória e reapropriados, no momento de sua ação em sala de aula.”... “Cada professor molda, através de suas diferentes vivências e apropriações intelectuais, o seu estilo. Conexões entre o objetivamente aprendido e o afetivamente vivido. Um outro tipo de lembrança, formada pelo somatório desses recortes cognitivos e vivenciais, apresenta-se e transforma a prática docente do novo professor em algo inteiramente individual, particular, pessoal.”(94)
“A apreensão do conhecimento escolar é globalizante”... “A rememoração das histórias de vida escolar vem mostrar que o conhecimento não é apreendido de forma isolada”... “O mergulho nas experiências anteriormente vividas, a sua explicitação e a reflexão posterior sobre o que foi lembrado, pode levar o professor à compreensão das influências que tiveram em sua prática docente, alguns aspectos subjetivos” ... “Fatores determinantes originários da sua forma particular de olhar o mundo a partir de características pessoais de raça, gênero e classe social” ... “Essas reflexões tornam o professor consciente também de que não é apenas mais um transmissor neutro do conhecimento e de informações específicas, mas um agente de memória que, com a sua presença, sua maneira de ser e interagir com os alunos, vai deixar marcas diferenciadas em todos eles.”(95)
A memória do professor como objeto de estudo
História de vida escolar do professor: tomada de consciência de aspectos de sua vida que estão presentes na sua maneira original e única de ensinar
“Os acontecimentos lembrados são relatados em um movimento em que se situam fatos ocorridos em diversas fases da vida do sujeito. A lógica das lembranças é a da emoção.”(95) – atemporalidade
“Se encararmos o professor como uma pessoa e sua atividade como resultado de uma elaboração artesanalmente construída de interações pessoais com vivências, experiências e conhecimentos, a sua prática docente se revela original e única e, desta forma, precisa ser compreendida”(96)
Melhor conhecimento de si mesmo, dos motivos que originaram a sua prática, das formas atuais como pode refletir sobre seu desempenho no sentido de superar-se e ser cada dia melhor professor-pessoa, na visão muito particular como articula estes dois sujeitos dentro de si mesmo.
“A socialização destas informações, sob a forma de textos e artigos, torna-se também importante, principalmente pela capacidade de sensibilizar outras pessoas, principalmente outros professores, a refletirem sobre si mesmos e identificarem seus prercursos pessoais de formação profissional”(96)
“Uma fase preliminar da (nova)ação... na elaboração de novas propostas sobre a formação de professores e sobre a profissão docente em um mundo em constante mudança”(citando Nóvoa, 1988, p. 12)
Referências
BABIN, Pierre. Os novos modos de compreender, a geração do audiovisual e do microcomputador. São Paulo, Paulinas, 1989.
BAUDRILLARD, Jean. Cool memories. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1992.
KENSKI, Vani. Memória e prática docente. In Faces da memória. Campinas, Centro de Memória da UNICAMP, 1995.
LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência
NÓVOA, António. Vidas de professores. Porto, Porto ed., 1992.
NÓVOA, António. “O método (auto)biográfico na encruzilhada dos caminhos (e descaminhos) da vormação de adultos” in Revista Portuguesa de Educação. Minho, Universidade do Minho, 1988.
--
AdrianeHalmann - 26 Oct 2004