Os trajetos do êxtase dissidente no fluxo cognitivo entre homens, folhas, encantos e cipó: uma etnografia ayahuasqueira nordestina
por LIRA, Wagner Lins em
« Voltar
O fenômeno ritual da bebida xamânica ayahuasca revela inúmeras potencialidades
místicas, afetivas e culturais. Nossas urbes contemporâneas elaboram distintas
configurações diante do alcance divinal promovido pela ingestão de tal infusão, oriunda
dos antigos povos andinos. O uso do chá expandiu-se nos centros urbanos, por
intermédio das principais linhas religiosas ayahuasqueiras brasileiras (daimista e
udevista), responsáveis pela propagação de suas doutrinas pelo país e pelo mundo,
construindo e ajudando a ampliar uma rede de relações formada a partir da ritualização
deste enteógeno. Atualmente, observa-se o surgimento de novos grupos, que
reinterpretam e dão continuidade à tradição, mesmo afastados das instituições ditas
“originais”. Estes são os dissidentes, pois seguem um caminho próprio na comunhão do
chá das florestas, permanecendo com a tradição, apesar da série de conflitos e acordos
inerentes à legitimação de suas ações simbólicas e rituais. O direcionamento dos
trabalhos espirituais permanece norteado pelos ensinos doutrinários elaborados pelos
antigos mestres daimistas e ou udevistas, relembrados, reelaborados e cotidianamente
adaptados às realidades dessas irmandades. A sacralidade da infusão continua atuante,
de forma que, o alcance divinal promovido pela mesma não foge às atmosferas místicas
e ritualísticas, de onde emergem padrões de consumo, que auxiliam os adeptos tanto no
lidar com a experiência de adentrar no mundo da ayahuasca, quanto em tirar proveito
dessas jornadas astrais, em prol da reformulação contínua de atos e conceitos inerente
ao contato com o sagrado. Cabe à antropologia urbano-contemporânea o registro
consciente dessas dissipações, no fortuito intuito de desmistificar àquilo que se ignora
por não se conhecer. Cabe às ciências sociais como um todo tentar acompanhar e
compreender o motivo da busca por tais práticas, aparentemente distantes, assim como o
motivo que leva essas pessoas a se mobilizarem diante da construção de um novo grupo
ayahuasqueiro, conseguindo produzir o próprio chá e ajudando, dessa forma, a dar
continuidade e amplitude à tradição, com responsabilidade, a partir de suas necessidades
e realidades materiais e espirituais. Dois núcleos nordestinos foram visitados para tal
análise etnográfica: a Sociedade Espiritualista União do Vegetal, localizada no
município de Riacho das Almas (PE) e o Centro de Harmonização Interior Essência
Divina, situado em Riacho Doce (AL). Ambos dissidentes, mas derivados das antigas
matrizes ayahuasqueiras. Ao longo dessa dissertação, direcionaremos nosso olhar tanto
à mobilização desses dois grupos, quanto às suas interpretações simbólicas a respeito
dos fenômenos presenciados em cada sessão ou trabalho, nos quais os fiéis se reúnem
na comunhão desse chá sagrado que, para esses religiosos, é um ser vivo, divino, com
poder, vontade própria, exigência e sabedoria.