CETAD UFBA

"As drogas, mesmo o crack, são produtos químicos sem alma: não falam, não pensam e não simbolizam. Isto é coisa de humanos. Drogas, isto não me interessa. Meu interesse é pelos humanos e suas vicissitudes."
Antonio Nery Filho

Cisne negro

Escrito por Luiz Felipe Monteiro Quinta-Feira, 24 de Fevereiro de 2011

Da obra ao texto, de garota meiga a princesinha 

ATENÇÃO! O texto a seguir contém spoilers


SDS.jpg

O filme de Darren Aronofsky Cisne Negro (Black Swan) trata basicamente, assim como o libretto do balé O Lago dos Cisnes dentro da trama, da modificação forçada do corpo feminino e das narrativas que cercam essa transformação. Ou, o que talvez seja ainda mais interessante, o filme foca no modo pelo qual se é possível lidar com essas narrativas e, dessa forma, estabelece seu tema, assim como quase todos os grandes filmes da história, como o próprio cinema.

No balé de Tchaikovsky, a jovem Odette é transformada em um cisne branco por um bruxo e passa a habitar um lago formado pelas lágrimas de sua mãe junto com outras donzelas transformadas em pássaros.

Durante a noite, a jovem volta a forma humana, apenas para voltar a ser cisne pela manhã. Durante um passeio noturno para caçar, um príncipe encontra Odette e a persegue, mas ela mantém distância. O

aparecimento do príncipe é oportuno, pois, como em todas as lendas com donzelas, somente o amor de um homem pode quebrar o encanto do bruxo. Em um baile no palácio do príncipe, Odette o encontra mais uma vez e eles dançam. Raivoso com a possibilidade de Odette se livrar do encanto, o bruxo transforma sua filha Odille em uma sósia malvada de Odette para que ela possa seduzir o príncipe – o que funciona, já que ele não nota a diferença. Desesperada, Odette se mata durante o nascer do sol, mesmo após o príncipe ter percebido seu erro e pedir seu perdão.

De acordo com o diretor do balé Thomas (Cassel) dentro do filme, Odette se mata pois é a única forma através da qual ela pode ser libertar do feitiço. Mas isso é um leitura superficial. O Lago dos Cisnes é uma tragédia apenas em termos, pois pode-se dizer que Odille é outra pessoa apenas em termos. O santuário de lágrimas criado por sua mãe mantém Odette em um estado de pureza feminina juvenil que deve ser protegida, fugindo dos avanços masculinos como um animal assustado de um caçador. Odille representa justamente a sua maturidade sexual e, assim, como toda tragédia ou todo filme de terror, O Lago dos Cisnes exibe os perigos de abrir mão da inocência ao mesmo tempo em que se delicia com a liberdade da maturidade sexual. Odette não “perde” no final da história, ela se torna Odille, vira uma mulher, se livra da influência da mãe e ganha o príncipe. Mas essa história está, é claro, escondida por debaixo da história trágica do suicídio.

Um processo semelhante ocorre na trama do filme Cisne Negro. Nele, três narrativas de transformação corporal se alinham – o história de Odette, o árduo trabalho do balé clássico e a maturação sexual feminina. Desde os anos 50, as teóricas feministas insistem que todo cinema é, por definição, estruturado por uma linguagem psicanalítica que dramatiza tensões psicossexuais, e o balé como forma narrativa, da mesma forma que a ópera, pode ser chamado de um canto à vagina. E, justamente, o filme se estrutura em torno de um suspense sexual em relação ao corpo de Nina (Portman).

De início, vemos ela dividida entre duas esferas – a de sua mãe (Hershey), que a transformou em cisne (bailarina), por assim dizer; e a do diretor Thomas, que lida com a sexualidade de Nina como parte crucial de seu trabalho. Sua mãe a chama de “garota meiga,” uma frase que se transforma em um motivo sonoro obsessivo, como é comum nos filmes do Aronofosky.

A natureza sexual das exigências maternas é clara – basta dar uma olhada pelo quarto infantil e cor-de-rosa de Nina e imaginar a imagem de boa moça feminina e prendada que lhe foi imprimida desde criança através do balé (que, por mais que seja uma arte-dança-esporte exigente e válida por si só, é inegável que o balé tem uma função, análoga ao dos esportes de equipe para os meninos, de colonizar a sexualidade de muitas meninas).

Thomas insiste que Nina se livre de seu ar vulnerável e casto e acredita que sua repressão sexual é visível em sua dança. Ele a considera uma bailarina incrível, do nível de protagonizar o balé como Odette, mas a incapacidade de Nina de dançar “sensualmente” convence Thomas que ela não seria capaz de dançar o papel de Odille, normalmente executado pela mesma bailarina.

O arco dramático está transparentemente claro perante os olhos de Nina: ela precisa traçar o clássico caminho do desenvolvimento psicossexual feminino: se livrar da influência materna e se colocar sob a “lei” de uma figura paterna – Thomas. Mas ela só conseguirá ser bem-sucedida se encontrar a sua Odille, por assim dizer: seu outro eu sexualizado.

Nesse sentido, o filme é escancaradamente psicanalítico em seus temas. Nina se encontra presa, sem pai, no que Lacan chama de “estágio imaginário,” onde a criança se encontra totalmente imersa no universo materno, incapaz de se ver como um indivíduo, sem linguagem, sem identidade, sem nenhuma necessidade. É “imaginário” não porque seja irreal, é apenas o nome, mas é também marcado pela diferença em relação ao “estágio simbólico,” representado pelo pai. Na trajetória Lacaniana “normal,” o pai, em determinado momento, interfere na relação quase incestuosa e homossexual que se estabelece entre mãe e filha no “estágio imaginário”. É nesse momento que a criança deseja matar o pai para poder ficar com a mãe, o tal do complexo de Édipo, mas acaba aceitando a Lei do Pai, que é na verdade a linguagem e a cultura.

O processo de emergir do imaginário implica também o que Lacan chama de “estágio do espelho” (note o número de espelhos no filme!) que é quando a criança se identifica no reflexo e percebe que é um indivíduo, separado da mãe, e que tem braços e pernas que ela pode mexer! A criança fica totalmente maravilhada com o próprio poder que ela é capaz de ver no espelho e aí que começa o “complexo de castração”: a criança se vê como um ser perfeito, poderoso e complexo, mas na sua experiência ela é limitada, falha e incapaz. Essa falha é interpretada pela criança em nossa cultura como uma castração – o menino acha que se não obedecer o pai, vai ser castrado como supostamente a mãe foi, e aceita a Lei do Pai para que ele possa casar com uma mulher que seja como sua mãe foi no imaginário; a menina acredita que é castrada e decide obedecer o pai para que possa recuperar o estágio imaginário ao engravidar.

Importa muito pouco o quanto desse esquema é verdade, uma vez que é um fato que o cinema realmente lida com esses conceitos, sendo eles fictícios ou não. A veracidade da psicanálise é ainda mais irrelevante em um filme como Cisne Negro, onde nada realmente parece real e tudo depende de narrativas. Assim, antes que ela possa sequer perceber, Nina está imersa em duas crises que se espelham e se alimentam: a crise “fictícia” de Odette que é ameaçada por Odille, e a crise “real” de encontrar uma sexualidade antes que o príncipe Thomas seja seduzido por outro cisne, digo, bailarina. É interessante como não fica muito claro qual narrativa influencia qual. Pode-se dizer que a história do balé tem um influência tão grande na mentalidade de Nina que ela começa a ler sua realidade de acordo com o libretto. Mas talvez seja o seu drama pessoal que esteja manipulando sua crise profissional. O que realmente importa, e falarei mais disso adiante, é que não não importa qual das narrativas é real.

O personagem de Beth (Ryder) é importante para marcar um modelo para Nina. No complexo de Édipo masculino, o pai funciona ao mesmo tempo como um censor e um modelo – ele proíbe a relação incestuosa com a mãe, mas é ele que o menino quer um dia ser para que, como o pai, ele possa “ter a mãe”. A tradiução feminina do complexo é um pouco diferente: Thomas é o pai que censura sua relação infantilizada com a mãe como incestuosa, mas é Beth, como a mulher madura desejada e protegida pelo “pai”, que funciona como modelo. Thomas é, assim, o pai que é ao mesmo tempo censor e objeto de desejo, pois é ele que Nina quer impressionar e possuir. Por isso é tão importante a cena em que Nina usa um batom roubado de Beth para pintar os lábios na tentativa de convencer Thomas a vê-la como o Cisne Negro e lhe dar o papel. Um pouco mais de tempo e imaginação nos levaria a começar a pensar sobre lábios vermelhos, cavidades, penetração e sangue menstrual. E Thomas tem um apelido carinhoso que supostamente é “só para Beth”: princesinha; que é, aliás, um apelido comum de pais para suas filhas. O que Nina mais quer é a ser a princesinha de Thomas.

Mas o que acontece? Apesar de tudo, Nina é escolhida para fazer os dois cisnes! Agora ela precisa lutar contra anos de repressão sexual que forçam que ela habite “o lago dos cisnes” de lágrimas maternas para poder amadurecer sexualmente para dançar o Cisne Negro corretamente. Porém, como sua repressão lhe ensinou tão bem, ela não consegue identificar que esse ser sexual vivedentro dela, e, assim, ela começa a projetar sua sexualidade na bailarina Lily (Kunis), que acaba sendo escolhida para ser sua substituta, ao mesmo tempo em que seu corpo começa a se metamorfosear em um cisne. Talvez ela devesse ter notado que seu próprio corpo exibia mais perigo do que Lily, mas imagino que uma bailarina deve ser muito bem treinada para colonizar e ignorar o próprio corpo o tempo todo – e esse, aliás, é o tema do filme! Colonização e modificação externa do corpo é o que Odette, mulheres e dançarinos têm em comum! Junte as três coisas numa só pessoa e não é surpresa que Nina enlouquece!

No clímax do filme, ela supostamente briga com Lily no seu camarim, mas Lily se transforma em outra Nina, que tenta enforcar a Nina “real” dizendo “é a minha vez!”. Supostamente é a Nina real que finalmente diz “é a minha vez!” antes de matar seu duplo, mas perceba sua voz e seus olhos – é a mesma pessoa dizendo “é a minha vez”, é o Cisne Negro, Odille, finalmente tomando o lugar de Odette. E ela mata o Cisne Braco virginal, Odette, a Nina real, justamente com um espelho. Que a Nina “real” foi a vítima pode ser visto algumas cenas depois, quando ela tira o espelho da própria barriga.

No última cena do balé, vemos Odette se suicidando, mas o que é na verdade uma vitória de Odille, seu lado sexualmente maduro. Antes de se matar, no clímax do clímax, ela deve olhar para o príncipe, olhar para o bruxo, e olhar para a platéia. Esse olhar para a platéia coloca o filme inteiro em mais espelhamentos. Quem de dentro de qual narrativa olha para qual platéia?

A jovem Odette, dentro do libretto, olha para seus leitores? Talvez, e isso marca a falsidade de sua tragédia. Ela poderia até mesmo piscar para a platéia, como se dizendo “Seus bobos, a Odette nem está morrendo! Eu estou viva como Odille! Viva!”.

A bailarina Nina, dançando o balé, olha para o público? Talvez, e isso marca a textualidade do balé ao quebrar a quarta parede. Inscreve a história de Odette como ficção e a de Nina como real.

Ou é Nina, dentro da narrativa psicossexual Lacaniana, que olha para sua mãe? Talvez, e isso traz a amarga revelação de que, por mais que tudo tenha sido feito para fugir da mãe, tudo que Nina faz é, afinal, uma performance para a mãe, até mesma fugir dela.

Ou é a atriz Natalie Portman, dentro do filme Cisne Negro, que olha para nós? Possivelmente, e isso marca definitivamente a indecibilidade da ficção e da realidade dentro do filme. Não que eles se misturem dentro da psicose da protagonista e que toda certeza escorra pelo ralo da loucura.

O que acontece é que esse filme escancara o que é verdade de todos os textos – que a distinção entre ficção e realidade não existe ou é totalmente artificial e irrelevante. Antes de isso significar que a realidade é falsa, isso na verdade implica que a ficção é real, muito real. Durante os momentos mais “loucos” (que podem ser também lúcidos) de Nina, pouco importa pra ela qual narrativa é menos ficcional – o balé, sua vida, sua sexualidade ou o filme. Nesse sentido, o filme é, assim como O Lago dos Cisnes, uma falsa tragédia. Ela não morre porque ela estava louca e incapaz de perceber o que era real – a distinção entre ficção e realidade é sempre uma decisão e ela está sempre fazendo decisões de interpretação. O maior indício de que a diferença ficção-realidade é ficcional é o próprio trajeto de Nina, em que suas decisões interpretativas sobre textos de “ficção” têm um efeito bem “real”. E, dessa forma, Cisne Negro é um filme brilhante (incrível, ótimo, perfeito!) por ser um filme justamente sobre cinema.


--


luizfelipemonteiro@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/6501767219384838


create new tag

Contador de visitas grátis

Pressione Enter para enviar a busca.

Logar