CETAD UFBA

"As drogas, mesmo o crack, são produtos químicos sem alma: não falam, não pensam e não simbolizam. Isto é coisa de humanos. Drogas, isto não me interessa. Meu interesse é pelos humanos e suas vicissitudes."
Antonio Nery Filho

Epidemiologia do consumo de substâncias psicoativas - Apresentação

O presente capítulo tem como objetivo discutir alguns aspectos metodológicos do emprego da Epidemiologia como fonte de evidências científicas sobre o fenômeno do abuso de substâncias psicoativas (SPA) nas sociedades modernas.

Nesse sentido, apresentaremos inicialmente uma avaliação do potencial da Epidemiologia para lidar com um objeto científico tão peculiar. Em seguida, pretendemos apresentar uma síntese dos principais achados produzidos por investigações epidemiológicas conduzidas no Brasil e em outros países. Em terceiro lugar, discutiremos alguns fatores relacionados ao consumo de substâncias psicoativas, buscando a devida contextualização histórica e cultural desse fenômeno, tão característico das formações sociais contemporâneas.

Apesar do reconhecimento precoce da importância do abuso de drogas como problema social e de saúde pública, é relativamente recente a utilização da Epidemiologia para o estudo da distribuição e dos determinantes de consumo de substâncias psicoativas (SPA). Definida como a ciência básica da saúde coletiva que estuda o processo saúde-doença e seus determinantes em grupos humanos, sua origem remonta a meados do século XIX, quando se estruturou a partir de um conjunto de conhecimentos oriundos da Clínica, da Estatística e da Medicina Social. A primeira, fornecendo o referencial básico para a definição de caso de doença, a segunda, os instrumentos para a quantificação e análise da associação de eventos e variáveis, e a terceira, o substrato ideológico para a abordagem coletiva dos fenômenos da saúde e suas determinações.

Circunscrito inicialmente a doenças de etiologia infecciosa, o escopo da Epidemiologia vem se ampliando ao longo de sua história e da história da humanidade, na busca da compreensão de eventos de natureza mais complexa. Em uma segunda fase do seu desenvolvimento, predominaram as enfermidades crônicas não-transmissíveis, e as com especial destaque para as doenças cardiovasculares neoplasias. Posteriormente, desenvolveu-se sobremaneira a pesquisa epidemiológica sobre saúde ambiental e ocupacional. Atualmente, a violência, os acidentes, os distúrbios psico-emocionais, o abuso de drogas, considerados como grandes problemas de saúde pública das sociedades modernas, passam a se constituir em temas de privilegiado interesse desse campo científico.

A importância da utilização da Epidemiologia para o estudo do abuso de drogas reside na possibilidade de dimensionar a real magnitude do problema, pontuar suas principais características enquanto fenômeno social que se apresenta como um problema de saúde coletiva, identificando grupos de risco e fatores de importância na produção do fenômeno. Além disso, a abordagem epidemiológica permite estimar necessidades de oferta de serviços de saúde e subsidiar o planejamento de intervenções que visem reduzir o problema e as condições a ele relacionadas na população.

A incorporação pela Epidemiologia de um objeto de tamanha complexidade, como o tema em questão, não se fez sem a agregação concomitante de novos problemas conceituais e metodológicos que se colocam hoje na ordem do dia e que se constituem em grandes desafios para a investigação metodológica nesse campo.

Abuso de SPA: desafios para a constituição de um objeto da Epidemiologia

A definição de abuso de drogas possui elevado grau de imprecisão, conforme assinalam Kozel & Adams (1986). O que vem a ser uma droga? Que critérios utilizar para classificar as drogas? São questões cujas respostas não obtiveram ainda um grau de consenso entre a comunidade científica que estuda o tema. Por sua vez, o conceito de droga, em si, extrapola o âmbito da farmacologia, revestindo-se de significados jurídicos - drogas lícitas e ilícitas - e culturais - drogas e/ou formas de uso socialmente aceitas e socialmente não aceitas - que conformam e recortam o objeto de investigação epidemiológica.

A definição do outro elemento do binômio que constitui o objeto de investigação - o sujeito que abusa de drogas - apresenta também elevado grau de imprecisão. O abuso de drogas não pode ser classificado meramente a partir de critérios quantitativos relacionados à freqüência ou intensidade de uso de uma determinada droga, mas sim à presença de problemas sociais e/ou de saúde relacionados ao uso. A dificuldade em lidar com essa questão tem feito com que grande parte dos estudos epidemiológicos se volte mais para a caracterização dos padrões de consumo, mediante a quantificação de intensidade ou freqüência de uso, do que propriamente para a caracterização de padrões de relação do sujeito com as drogas - base da definição clínica de caso no tocante ao abuso de drogas ou das toxicomanias.

O uso de drogas é um ato voluntário, pelo menos enquanto não se configura a relação de abuso. Se a voluntariedade é incapaz de explicar o fenômeno do uso e abuso de drogas enquanto fenômeno coletivo e social, por sua vez, há que se questionar se os modelos de determinação utilizados pela epidemiologia até então são capazes de incorporar um elemento tão inusitado.

Os estudos epidemiológicos requerem a utilização de instrumentos adequados para estudos populacionais que possam ser auto-aplicados ou aplicados por pessoal não especializado, em geral em grandes amostras. Obviamente tais instrumentos não podem ser idênticos àqueles utilizados na prática clínica.

Devem ser instrumentos claros, bem estruturados, que não permitam a explicação de conceitos nem a interpretação clínica de achados pelo entrevistador63. Na área de saúde mental é comum a realização de estudos em dois estágios. O primeiro, para identificação de suspeitos, e o segundo, para confirmação de casos através de entrevista clínica mais detalhada. No caso do abuso de drogas, os procedimentos relacionados à aplicação de instrumentos e às técnicas de coleta de dados apresentam imensas dificuldades:

Em primeiro lugar, dada a imprecisão do próprio objeto de investigação, falta ainda uma padronização dos instrumentos para diagnóstico populacional que permitam a comparação entre os estudos e entre populações de diferentes países8. Alguns esforços têm sido feitos nessa direção, buscando-se não apenas a padronização de instrumentos, mas a adoção de procedimentos que visem garantir a qualidade dos dados coletados7,73. Um esforço de padronização relaciona-se à tipologia proposta pela OMS e adotada, hoje, pela maioria dos estudos de prevalência, estabelecendo padrões de consumo para uso de drogas. Destacamos os citados ao longo do texto:

Esta classificação leva em conta apenas a freqüência de uso, não considerando o volume da ingesta nem tampouco a ocorrência de problemas relacionados ao uso de substâncias.

Uma das questões que mais têm sido assinaladas é a garantia do anonimato dos respondentes e do sigilo das informações prestadas, pelo fato de se estar lidando com comportamentos ilícitos e, muitas vezes sujeitos a sanções de ordem moral e legal. Essa garantia é eticamente recomendável, preservando o respondente, e tecnicamente desejável, uma vez que assegura também uma melhor qualidade do dado coletado. Alguns países, a exemplo dos EUA, conseguiram desenvolver sistemas de vigilância que permitem, através do levantamento periódico (estudos de corte transversal) em grupos populacionais com a adoção de instrumentos padronizados, o monitoramento da situação com respeito ao consumo de drogas.

Uma outra dificuldade metodológica na abordagem epidemiológica das substâncias psicoativas diz respeito à não existência, a priori, de um padrão- ouro frente ao qual possa ser avaliado o desempenho de instrumentos de coleta drogas. Em psiquiatria, o padrão-ouro simplificados para abuso de recomendado é a entrevista clínica desenvolvida por profissional especializado. No entanto, lançar mão dessa estratégia no caso de estudos populacionais de abuso de drogas pode implicar em rompimento do anonimato dos respondentes e o sigilo das informações prestadas, comprometendo a validade da técnica. Além disso, se o conceito é impreciso ou variável ou relativo, o padrão resulta vago ou não-estável ou contexto-sensitivo.

Em uma proposta de avaliação do conhecimento epidemiológico sobre tema de tal complexidade, devemos considerar as seguintes questões fundamentais: a) como se distribui no espaço e no tempo o fenômeno do abuso de drogas? b) quais são os fatores de risco a ele associados capazes de contribuir para modelos de compreensão do problema? c) que segmentos da população estariam mais expostos a essa condição, constituindo os chamados grupos de risco? Este roteiro, que grosso modo corresponde à seqüência da investigação epidemiológica, será tomado como estrutura básica no presente texto, em dois níveis de abrangência: particular, da situação brasileira, e no nível geral, da literatura epidemiológica mundial.


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