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FCCV -Leitura de fatos violentos publicados na mídia Ano 9, nº 15, 27/04/09

27 Apr 2009


O LUGAR DA MUDANÇA: E A MUDANÇA DO LUGAR?

O espaço é amplo, é aberto, é bonito e não tem lugar para coisas degradadas.

Muitas vezes, o lugar e o espaço são a mesma coisa como propõe o dicionário, mas em outras vezes eles são tão diversos que um se opõe ao outro quando, por exemplo, o espaço não cabe o lugar e vice-versa.

A situação pode ser ilustrada a partir da leitura de uma matéria publicada no jornal A Tarde em 19 de abril de 2009, à página B4, sob o título Obras do Bela Vista começam em setembro. A notícia se refere ao início das obras de um empreendimento imobiliário que, além da habitual construção de prédios residenciais e comerciais edificará um bairro em uma área de 340 mil metros. O espaço físico destinado à referida construção está situado em uma área na qual habitam pessoas que vivem em condições modestas e modestíssimas.

O empreendimento, portanto, estará próximo de espaços que não se encaixam nos padrões anunciados pelos responsáveis pela obra os quais, de acordo com a matéria, “garantem que a localização do Bela Vista em área onde não existem hoje empreendimentos de alto padrão, não deve causar problemas”. E usando as próprias palavras do engenheiro entrevistado, Luciano Amaral, a notícia prossegue: “a proximidade das moradias entre pessoas de classes sociais diferentes é uma característica que pode ser verificada em todas as regiões de Salvador (...) Bela Vista tem a dimensão de um bairro. Salvador tem essa mistura”.

No aspecto aqui mencionado a notícia não traz grande novidade. O que é alvo de resposta diz respeito à inquietação quanto à possível falta de cabimento da iniciativa naquele espaço, mas não por carência de área física e sim em razão de algo como a atmosfera sócio-econômica suficientemente distinta dos padrões do empreendimento a ponto de gerar a impressão de negócio arriscado e controverso.

O engenheiro entrevistado, ao “tranqüilizar” os leitores chama a atenção para a extensão da área compreendida pelo investimento imobiliário: “Bela Vista tem a dimensão de um bairro”. Essa parte da resposta sugere algo como uma autonomia do Bela Vista dada a sua condição de bairro e isso pode ser lido como área independente, anulando-se a proximidade física e estabelecendo-se distâncias simbólicas em relação à circunvizinhança.

Enquanto a área se encontrava ali, colada, simbolicamente, aos lugares já estabelecidos era julgada como parte daquela extensão, mas agora que ela assumiu um nome, um status distintivo, deixando de ser parte do antigo território e se enquadrando como elemento de seu exterior, não obstante a continuidade física. Nesse sentido, é como se aquele espaço tivesse “progredido” e se mudado de lugar, como ocorre, muitas vezes, com os indivíduos que ascendem economicamente e se transferem para endereços mais compatíveis com as suas posses e poses.

Uma nova química se estabelece na conexão entre as partes antes solidárias e agora estranhas. A impressão que se tem é de que nessa química se evidenciará uma distinção como aquela proposta pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em seu livro Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. O autor se refere à existência de guetos voluntários e guetos verdadeiros. Os primeiros têm como propósito “impedir a entrada de intrusos – os de dentro podem sair a vontade”. Ele considera que as pessoas que dão de tudo para terem “o privilégio do ‘confinamento espacial e fechamento social’ são zelosas na justificação do investimento pintando a selva do lado de fora dos portões com cores mais carregadas”. Ao passo que nos guetos verdadeiros não “é possível livrar-se do poderoso estigma territorial ligado à moradia numa área publicamente reconhecida como depósito de pobres...”. Existe a possibilidade de que com a nova conformação urbana a ser inaugurada com o Bela Vista os elementos indicadas por Bauman assumam as condições de ficções daquele ambiente de clivagem. E assim, será possível que o lado de fora (gueto verdadeiro) venha a se constituir em elemento indesejado daquele lugar, ao passo que o lado de dentro (gueto voluntário) passe a representar com propriedade o espaço.

Essa disposição já se estabeleceu pela Cidade, pelo País e pelo mundo, mas nem por isso deve ser tomada como a medida cabível na relação entre desiguais. A grande novidade desse empreendimento seria a construção de outro tipo de conduta que não o incremento da suspeição e projeção de estigmas contra os moradores habituais daquela área. Eis uma obra que pode entrar para a história da cultura imobiliária no que se refere à concepção de estratégias que visem minorar a violência simbólica contida entre dois mundos tão desiguais.

     



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